Crise mundial e resposta ecológica |
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Nos meios que dão prioridade à natureza e ao ambiente, estão ser universalmente debatidas as implicações da crise financeira e económica mundial com a maior atenção. São duas as principais abordagens que o debate revela. De certa perspetiva, a crise financeira (que é também económica e institucional) surge como uma ameaça às políticas de combate às alterações climáticas e a outras políticas de proteção do ambiente. Perante a gravidade da crise, os Estados e as empresas estariam a cortar sem dó nem piedade na afetação de fundos atribuídos ou a atribuir a essas políticas. Segundo outra vertente, a crise é oportunidade. De facto, a parcial paralisia da máquina económica é vista por outros como uma oportunidade de reorientar toda a economia num sentido mais favorável ao ambiente e uma demonstração de efeitos benéficos de uma paragem em atividades destrutivas. É essa por exemplo a posição de Hervé Kempf , jornalista do Le Monde, e autor de diversos livros, dois dos quais, os mais recentes, ostentam títulos elucidativos (http://mneaquitaine.wordpress.com/2009/01/20/kempf-pour-sauver-la-planete-sortez-du-capitalisme ): em 2007, "Comment les riches détruisent la planète ?" (Como é que os ricos destroem o planeta, há uma edição em castelhano de "Libros del Zorzal") e, em 2009 : "Pour sauver la planète, sortez du capitalisme" (Para salvar o planeta, saiam do capitalismo). Um seu pequeno artigo, uma crónica curta na verdade, na edição do Le Monde de 15-16 de fevereiro de 2009, apresenta um resumo dessa posição.
É claro que Kempf não ignora os enormes dramas causados pelos despedimentos na sequência da crise. Mas, como é evidente, não se pode acusar a sua posição de ter provocado esses despedimentos! Há muito que os que pensam assim (pois muitos o pensaram por antecipação de décadas e até mais do que isso, embora sem referência a um momento tão concreto da história) propõem precisamente a tal reorientação para evitar os dramas que se estão a passar! Simplesmente, a máquina social continuou (e continua) a rolar em direção ao muro. Se alguns passageiros procuram saltar em andamento, a maioria foi conduzida, e está a ser conduzida, de encontro ao muro. Desenvolvimento destrutivo O desafio que a crise ambiental (clara para as instituições internacionais pelo menos desde 1972, data da Conferência de Estocolmo da ONU sobre o ambiente) sempre colocou foi o de mudar a direção da máquina de forma a ela não ir embater contra o muro. Isso decerto implicaria que outras prioridades tinham que ser dadas ao funcionamento social (económico e portanto político), outras atividades teriam que substituir as atividades ambientalmente destrutivas e deveriam ser remuneradas - inclusive não-atividades aparentes -, o que evitaria os despedimentos massiços a que se assiste e se continuará a assistir provavelmente. O próprio conceito de «desenvolvimento» teria tido que ser orientado para outros fins: não medido pelo crescimento económico ou do PIB, mas pela satisfação do humano fundamental, a começar pela não-fome, pela instrução, a saúde preventiva, a proteção da natureza. Ora, como foi demonstrado desde há muito, grande parte daquilo que é rotulado de desenvolvimento é precisamente o que leva largos setores da população à fome, à falta de instrução, à doença, à exposição aos efeitos da destruição ambiental, incluindo as vagas enormes de refugiados e migrantes ambientais ainda por vezes confundidos com simples migrantes económicos. Ao surto de consciência ecológica nos anos 1960-70, que se baseava nessa perspetiva, seguiu-se, nos anos 1980, uma doutrina da conciliação espontânea da economia, tal como existia, com a proteção ambiental. Doutrina falsa ou equivocada, que é parte do problema atual, e não da solução. Sem dúvida, a economia e o «desenvolvimento» não só são compatíveis com a proteção e regeneração do ambiente e da natureza como só são possíveis com estes últimos (e vice-versa). Mas é então uma economia e um «desenvolvimento» profundamente diferente do que tem sido tomado por esses nomes, com outras prioridades e outras práticas, e exigindo outras estruturas sociais e produtivas e outros modos de funcionamento. E passar a essas outras formas de funcionamento (o que obviamente não pode ser feito com uma varinha mágica e levará sempre um tempo prolongado de transições graduais) é a solução que restaria à crise. Seria para isso necessário que as sociedades, de forma consciente e coletiva, optassem por essas soluções e revissem portanto as suas prioridades. Nada garante que tal aconteça, os sinais dominantes são mesmo inversos desses. As transformações, se vierem a existir, em vez de assumirem a forma gradual capaz de adoçar o impacto doloroso da transição, serão talvez provocadas aos sacões, como o está em parte a ser esta crise atual e poderão ser as futuras. Sacões porém com um cortejo enorme de sofrimentos atrás de si. Prosseguindo o resumo da crónica de Hervé Kempf, ele lembra, a seguir, que a crise, ou mesmo o seu momento, era previsível para o caso dos Estados Unidos mas também para o da China. Ele próprio a previu ao escrever em 2006: "Entrámos num estado de crise ecológica duradoura e planetária, que se deveria traduzir por um abalo próximo do sistema económico mundial. Os rastilhos possíveis poderiam acender-se na economia ao atingir a saturação e esbarrar contra os limites da biosfera: uma paragem do crescimento da economia americana, minada pelos seus três défices gigantescos (balança comercial, orçamento, dívida interna). Como um toxicodependente que só se mantém de pé à custa de doses repetidas, os Estados Unidos, drogados do sobreconsumo, titubeiam antes do colapso; uma forte travagem do crescimento chinês, já que se sabe que é impossível que tal crescimento mantenha duradouramente um ritmo de crescimento anual muito elevado. Desde 1978, a China conheceu um crescimento anual da sua economia de 9,4 por cento. O Japão é um precedente a não esquecer: vinte anos de crescimento assombroso, e em seguida a estagnação duradoura desde o início dos anos 1990". Prognósticos e saídas O prognóstico do cronista é que a economia não voltará a arrancar como antes e que o crescimento mundial do PIB não voltará aos 5 por cento; teria terminado a expansão rapidíssima da China e da Índia. Temos pois, segundo ele, que conceber um mundo novo, uma outra economia, uma outra sociedade, inspirados pela ecologia, pela justiça e pelo cuidado pelo bem comum. O prognóstico poderá estar errado, mas é evidente que o de 2006 se confirmou em pleno, para já. Sem esquecer que as crises que precederam e preanunciaram a atual (Ásia nos anos 1990, economia internética no início dos anos 2000) foram elas também, de alguma forma, previstas por diversos economistas e analistas não convencionais a que ninguém "sério" obviamente prestou ouvidos.
E, no entanto, quem tinha por função prever e antecipar soluções nada previu e nada antecipou. É claro que, sendo esses o mundo "oficial", o único que para eles e para a imprensa realmente existe, tudo o resto não passando de paisagem ou menos ainda, julgam de facto que ninguén (isto é, nenhum deles) nada previu. O que faz supor que as soluções postas em marcha serão segundo as receitas deles mesmos e não segundo as sugestões e pistas fornecidas por quem teve a lucidez de prever. Daí que não possa haver expectativas excessivas sobre se as sociedades e seus líderes teriam aprendido já alguma coisa de fundamental com a crise. E agora, que fazer? Na última parte do seu pequeno artigo, Hervé Kempf põe a questão clássica já posta por Tolstoi e Lénine (um, a via não violenta, outro a via revolucionária; só a primeira, a meu ver, pode ajudar a sair do atual impasse), e depois sempre retomada quando a perplexidade se sobrepõe às convenções: que fazer? A resposta de Kempf, quiçá um pouco abrupta: parar de macaquear Keynes e de nos imaginarmos em 1929 quando estamos em 2009: a dependência, o endividamento, a inflação, não são a solução. Consertar o reboco do edifício não poderá reparar alicerces em ruínas. Importa pelo contrário operar uma redistribuição da riqueza coletiva em direção aos pobres; a ferramenta para isso poderia ser o RMA: rendimento máximo admissível. (Diga-se, comento eu, que isso provavelmente transformaria a corrida à riqueza em simples corrida ao RMA - talvez já fosse um progresso perante o que hoje se vê: a transformação da vida económica, social e nacional numa maratona rumo a um ranking que nada de facto de importante significa quanto a objetivos que não se reduzam à dimensão quantitativa; o que põe a questão, complexa, fulcral, mas que aqui não há espaço para abordar, do significado ou absurdo de índices como o PIB e das alternativas que têm sido tentadas). Ainda segundo Kempf, a redução da desigualdade também ajudará a alterar o modelo cultural de sobreconsumo, e tornará suportáveis as descidas necessárias e inelutáveis do consumo material e de consumo de energia nos países ricos. Outra exigência: orientar a atividade humana para os domínios de fraco impacto ecológico, mas criadores de emprego, e nos quais as necessidades são imensas: saúde, educação, cultura, poupança de energia e sua produção ambientalmente compatível, incluindo a mais importante forma de energia que é a agricultura, transportes coletivos, a conservação e restauração da natureza.Fácil? Não. Mas, segundo ele, mais realista que julgar possível o regresso à antiga ordem, a anterior a 2007. E por aqui me fico, não sem antes referir um artigo também publicado no mesmo jornal (mas em inglês, num pequeno suplemento do The New York Times), sobre a forma como os japoneses estão a reagir à crise: reforçando a poupança, refreando o consumo, levando um estilo de vida mais simples, para desespero dos "economistas" (seria mais certo chamar-lhes "gastadoristas"), que põem, desaprovadoramente, como parte da explicação, a ancestral cultura oriental que encontramos já compendiada nos grandes mestre chineses, no taoísmo, em Confúcio, etc, e que era também a "cultura" tradicional no Ocidente até há bem pouco tempo. De facto, a generalização da "criação de riqueza" à maneira ocidental moderna em países de outras culturas, embora aparentemente coroada de êxito, só pôde ser feita escorchando vivos os sujeitos dessa "felicidade"; basta acompanhar a evolução desses países para verificar que Dickens e Soljenitsine teriam aí farto material para novos "infernos industriais" e "concentracionários". José Carlos Marques, veterano activista ambientalista português, é vice-presidente da associação Campo Aberto , con sede no Porto, e responsável de Edições Sempre-em-pé . |
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